domingo, 4 de novembro de 2012

Saneamento básico, desoneração tributária e risco moral


Lauro Brito de Almeida, Dr. EAC|FEA|USP(1)
Marcos Antonio de Souza, Dr. EAC|FEA|USP(2)
Serviços de água e esgoto precisam de R$ 420 bi até 2030. Essa foi a frase utilizada pelo Valor [Brasil Especial, A8, 1,2,3 e 4/11/2012] para destacar o volume de recursos monetários necessários para investir na universalização dos serviços de água, coleta e tratamento de esgoto para a população brasileira. O Brasil, conforme o Valor:
Sexta maior economia do mundo, [...] tem um desafio árduo pela frente: universalizar os serviços de água e esgoto para os mais de 190 milhões de brasileiros das cinco regiões do país, cujas redes de saneamento ostentam históricos déficits. Cerca de 60% do esgoto são lançados a céu aberto, enquanto 54% dos domicílios não possuem rede coletora. Do lado de abastecimento de água, a realidade também é dura: 55% dos pouco mais de 5.500 municípios poderão conviver com déficit de abastecimento hídrico nos próximos anos, enquanto um em cada cinco lares não tem água encanada.
Não é por menos que essa cifra bilionária, necessária para disponibilizar um dos principais serviços básicos a sociedade, desperte a atenção dos empresários. Apesar de não haver 
nada de errado nesse comportamento, não deixa de ser paradoxal, pois, de um lado um serviço – como saneamento básico – quando não disponibilizado traz consequências diretas a saúde do brasileiro, com desdobramentos no desempenho escolar, emprego etc, e, por outro lado, seja, oportunidade bilionária de negócios. Mas o mundo capitalista dos negócios é assim mesmo, ou seja, uma necessidade [de que natureza for] não atendida tem valor econômico a ser explorado.
O olhar de oportunidades de negócios em saneamento básico por parte do empresariado brasileiro e estrangeiro se traduz na realização do II Seminário FIESP de Saneamento Básico em 30/12/2012 na cidade de São Paulo.
O Brasil, nas últimas décadas, tem promovido um processo de quebra de monopólio estatal na concessão de serviços públicos. Modelos de negócios tem sido implementados, agências reguladoras foram estruturadas as pressas e como não podia deixar de acontecer, ao menos na fase inicial, capturadas pelos regulados.
Na atividade de saneamento básico há empresas privadas atuando, cuja presença é em torno de 6%, principalmente por meio de PPP [Parceria Público Privada]. Estruturar e gerir o negócio de saneamento básico por meio de PPP´s, ao menos no momento, é uma alternativa. Há reclamações de alguns representantes das partes interessadas [advogados, consultorias, por exemplo.] da falta de capacitação dos técnicos governamentais para atuarem em PPP´s. Outros pedem incentivos, créditos com juros negativos e, por fim, como está na moda: desoneração de tributos.
[Desoneração de Tributos] O sistema de tributação brasileiro, não é novidade para ninguém, é complexo. Os estados se aperceberam que a gestão das políticas tributárias podem lhe conferir vantagens competitivas na atração de indústrias. Assim, além da atração de empresas e também motivados pela necessidade de manterem e aumentarem a arrecadação, presenciamos a chamada “guerra fiscal” e, a julgar pelas notícias sem perspectivas de acordos.
Quanto aos tributos incidentes sobre as atividades empresariais [sem esquecer que são os consumidores que realmente arcam com o ônus], alguns são cumulativos, outros não. Por outro lado, a cumulatividade ou não dos tributos depende da opção por esse ou aquele regime tributário. Fora isso, há as intermináveis divergências de entendimentos sobre o que pode ou não entre o contribuinte pessoa jurídica e o fisco. No entanto, essa complexidade do sistema tributário, gera um negócio de muitos dígitos para consultorias, consultores independentes, contadores e bancas de advocacia.
A tributação drena recursos da população pela sua incorporação no preço final do produto. Assim como políticas de juros altos [e os economistas, analistas e “palpiteiros de plantão”, não se entendem], os tributos [de uma maneira geral], reduzem a renda disponível das famílias para consumo.
As empresas, como não poderiam deixar de fazer, repassam todo e qualquer tributo ao preço. Historicamente, no geral, a desoneração tributária – ainda que temporária – não é repassada ao consumidor, servindo para as empresas recuperarem suas margens de lucro.
No caso específico das empresas de saneamento básico, segundo o jornal Valor Econômico:
A desoneração de tributos – especificamente PIS e Cofins – sobre o setor de saneamento básico vai liberar imediatamente R$ 2,1 bilhões por ano para investimentos. A estimativa é do diretor do departamento de água e esgoto do Ministério das Cidades, Johnny Ferreira dos Santos, com base no valor das contribuições recolhidas pelo setor.
O valor não é desprezível, provocando reações favoráveis por parte de gestores de empresas, como a da presidente da SABESP, que segundo o jornal:
Ao ouvir o comentário de Ferreira durante o 2º. Seminário de Saneamento promovido pela Fiesp, na terça-feira [...] disse considerar “muito bom” que o governo esteja pensando a sério sobre o tema e que a desoneração será “muito bem-vinda”.
Os valores recolhidos ao erário público federal pela SABESP, no contexto brasileiro são significativos. O Valor relata que:
A companhia de saneamento paulista responde por R$ 600 milhões anuais em PIS/Cofins, quase um terço da arrecadação do setor. A presidente da estatal afirmou que o valor elevaria a capacidade de investimento da companhia. Só em 2011 a Sabesp gastou R$ 2,4 bilhões em obras, parcerias público-privadas [PPPs] e locação de ativos – modalidade em que a empresa usa recursos de empresas privadas [...].
[Governança E Risco Moral] O montante de recursos monetários a disposição das empresas de saneamento básico, originados de uma possível desoneração tributária [PIS e Cofins], quer públicas ou privadas – são significativos. Apesar de a proposta de desoneração tributária liberar recursos para, ao menos em tese, investir na expansão ou melhoria da rede de saneamento básico - essencial à população brasileira -, entendemos, há aspectos a serem considerados e decorrem da natureza da geração do tributo.
Discutir fontes substitutivas para essa renúncia fiscal foge ao propósito desta nota. No entanto, assim como a totalidade dos demais tributos, PIS e Cofins são integralmente repassados ao consumidor no preço do bem ou serviço prestado.
Dessa forma, há um enorme grupo de stakeholders [grupos de interesse] a serem considerados na discussão da modelagem, operacionalização e implementação da proposta de desoneração de tributos. Infelizmente, como dito, em geral as desonerações de tributos não revertem em benefício do consumidor final, quer pela redução dos preços praticados ou de outra forma.
Em uma situação como a proposta pelo diretor do departamento de água e esgotos do Ministério das Cidades, na qual os recursos ficariam imediatamente a disposição das empresas, os gestores poderiam ser tentados [por ganância, interesse pessoal ou pressão do “mercado”] a tomarem decisões e ações contrárias ao interesse da população. Os consumidores atuais estarão, em tese, financiando a expansão dos serviços de saneamento [um fim nobre], no entanto, sem garantia alguma de que seus interesses sejam respeitados.
Nesse caso poderá estar ocorrendo um problema de agência. Os consumidores assumem o papel de principal e as empresas de saneamento o de agentes. E a questão: como garantir que os agentes cumpram os interesses do principal? Como o principal pode se certificar disso? Essas questões passam pela governança.
Portanto, é necessário uma discussão cuidadosa, com a participação efetiva e comprometida de agentes que representem os consumidores e, principalmente, com muita transparência.
O problema de agência, nas suas diversas formas sempre esteve presente no âmbito das relações sociais, sendo que o seu destaque maior tem sido para as questões das transações havidas no mundo dos negócios. Em 1796 Adam Smith advertia que:
Não se deve esperar que os diretores [...] [das] sociedades, porém, sendo gestores do dinheiro de outras pessoas, e não do seu, cuidem dele com tanta atenção quanto os sócios de companhias limitadas o fazem. Tais como o administrador do homem rico, tendem a se preocupar coma as pequenas coisas não do ponto de vista de seu patrão, e tendem muito facilmente a se aproveitar dele. Portanto, deve tender a haver negligência e desperdício, até certo ponto na gestão de tal tipo de empresa [SMITH, Adam, 1796 apud JENSEN & MECKLING, 1978:305]
No entanto, o problema entre as partes nas relações contratuais é bem anterior. Para se ter uma ideia, já em 1492 o risco moral [moral hazard] fazia parte das preocupações da corte espanhola [principal] com relação ao comportamento de determinados agentes, responsáveis por conduzir alguns de seus negócios.
É o caso de um empreendimento liderado por Colombo e custeado pela coroa espanhola, em que esta nomeou um auditor para “[...] fiscalizar as tapeações de Colombo quando começasse a calcular o custo do ouro e das especiarias que acumulasse.” [HENDRICKSEN & Van BREDA, 1999:45-6]. Tal procedimento ocorreu dois anos antes do lançamento do livro de Paciolli, cujo inegável mérito foi o de ter sido um astuto e observador das práticas comerciais, e principalmente de suas formas de registro e controle. O que era, até então divulgado com uma “história oral”, passou a ser formalizado na forma escrita.
As relações entre os agentes e entre principal e os agentes são permeadas pela assimetria de informações. No caso da desoneração tributária, poderão ocorrer situações de informação incompleta. Apenas como exemplo, os alegados investimentos em saneamento pela empresa Sabesp. Apesar de informados nas Demonstrações Contábeis publicadas, não sendo as regras do jogo totalmente claras, não sabemos qual será o rigor de punição caso ocorram eventuais desvios de conduta.
Citando apenas como exemplo, a Sabesp conforme texto do Valor “[...] responde por R$ 600 milhões anuais em PIS/Cofins [...]”, para ilustrar uma situação de informação imperfeita. Considerando a proposta do Sr Ferreira, neste ambiente, as regras serão claras, mas as ações poderão não ser conhecidas pelos outros agentes. As Demonstrações Contábeis do ano de 2011 publicadas pela Sabesp, ao longo de suas 192 páginas não detalham o montante efetivamente recolhido de PIS/Cofins aos cofres do Tesouro Nacional. Na Demonstração de Valores Adicionados – DVA [pg. F-72] os valores dos impostos, taxas e contribuições são segregados, apenas, em federais, estaduais e municipais.
Se mecanismos adequados de governança não forem instituídos os agentes poderão ser tentados a agirem em desacordo com o interesse dos agentes. O invés de usarem os recursos para os fins propostos, os agentes poderão agir na maximização de sua satisfação e/ou interesses, ou atenderem a pressão do “mercado”,neste caso, maior distribuição de dividendos, por exemplo. Esta hipotética situação é um alerta do risco de os recursos oriundos da desoneração do PIS/Cofins sejam utilizados para outros fins que não os de investimentos na expansão e/ou melhoria da rede de saneamento básico. Então, nesse contexto, está instituído, se assim os gestores se comportarem, uma situação de risco moral.
O risco moral - configura-se em uma situação na qual o principal não é capaz de controlar todas as ações do agente. Como consequência as ações do agente têm diferentes valores quando comparadas com a do principal. No passado recente, um exemplo foi o comportamento dos executivos da Enron [agentes] que aproveitando a situação executaram [com a conivência de outros grupos de interessados] ações ocultas.
Voltando as empresas de saneamento, a proposta de desoneração dos tributos PIS e Cofins é específica para liberar recursos destinados para financiar a expansão e/ou melhoria da rede de saneamento básico. No entanto, as decisões e ações dos gestores quanto ao uso desses recursos poderão não estar alinhadas aos interesses dos consumidores [financiadores]. Caso isso ocorra, ficará evidente uma situação de expropriação dos financiadores, no caso, os consumidores dos serviços de saneamento, pois são estes que arcam com o ônus da desoneração do PIS/Cofins. Cabe, para evitar tal expropriação, a instituição de mecanismos de governança que protejam os interesses dos financiadores das tais ações ocultas.
A sociedade, não importa o tipo, vive sob a égide de contratos, quer sejam implícitos ou explícitos. Para evitar que ocorram desvios de conduta por parte das empresas, já que o ambiente será de assimetria de informações, haverá custos de agência e a necessidade de terceiros que representem os consumidores com alto grau de comprometimento e não por mera formalidade.
O modelo proposto é que os recursos da desoneração não sejam imediatamente e livremente liberados ou repassados as empresas. Que seja constituído um fundo, sob gestão, por exemplo, do BNDES e que a liberação ou repasse ocorra após a aprovação de um projeto. As partes intervenientes, representando os consumidores serão a Advocacia Geral da União, Procuradoria Federal e Tribunal de Contas da União. Os dois primeiros resguardariam as questões contratuais e a terceira atuaria fortemente na análise técnica e econômica dos projetos – nesta fase em parceria com o BNEDES – e posteriormente no acompanhamento e análise de sua execução.
[Por Fim ...] Parece que sempre viveremos com a questão “canhões ou manteiga”. O caso em particular – saneamento – apresenta indicadores com tamanha desigualdade. O volume de recursos requeridos é bilionário e, por isso mesmo, tem mobilizado os órgãos representativos da iniciativa privada – o que é bem vindo. Logo, vamos escolher a “manteiga”.
Dirão alguns que a proposta é burocrática, envolve custos e provocará demoras. Tomemos cuidado com essas argumentações. O PIS/Cofins é bancado pela sociedade e a esta os usuários destes recursos tem que prestar conta. As regras para liberação, fiscalização tem que ser claras e cumpridas num ambiente de transparência. Como há assimetria de informação entre os agentes, e para assegurar que o contrato seja cumprido, como em qualquer outro negócio, há custos envolvidos. Por que haveria de ser diferente nesta situação?
Assim, é necessário cuidado redobrado com modelos de financiamento de investimentos desse tipo, especialmente por implicar em desoneração tributária. Os grupos de interesses não podem ser deixados de lado na modelagem do processo.
Esperamos, que caso essa proposta do governo avance, não seja outra do tipo “cobertor curto”.
(1) Lauro Brito de Almeida, Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP, Pós-Doutorando em Administração pelo PPAD PUC PR e Professor do PPG Mestrado em Contabilidade da UFPR. Interesses de pesquisas em Análise Gerencial de Custos, Economia de Empresas e Educação, Ensino e Pesquisa. Experiência e atuação profissional em Análise Gerencial de Custos, Orçamento Empresarial, Elaboração de Plano de Negócios para Pequenas e Médias Empresas, Analise Econômica e Financeira e Elaboração de Estudos e Pareceres. Contato: gbrito@uol.com.br
(2) Marcos Antonio de Souza, Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP, Mestre em Administração pela UMESP, Pesquisador CNPQq Nível II e Professor Programa de Doutorado e Mestrado em Ciências Contábeis, UNISINOS. Consultor e sócio da empresa BRUINE SOUZA Consultores Associados [www.consultoriabs.com.br.] Interesses de pesquisas em Análise Gerencial de Custos, Economia de Empresas, Gestão de Custos no Setor Público e Educação, Ensino e Pesquisa. Experiência e atuação profissional em Análise Gerencial de Custos, Orçamento Empresarial, Elaboração de Plano de Negócios para Pequenas e Médias Empresas, Analise Econômica e Financeira e Elaboração de Estudos e Pareceres. Contato: marcosas@unisinos.br

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